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Não há dúvida: a invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, deram a Lula uma oportunidade de ouro para pacificar o país. Depois de vencer Jair Bolsonaro pela menor margem de votos desde a redemocratização e assumir o cargo acossado pela polarização, o presidente convenceu algumas das principais autoridades nacionais, inclusive integrantes da oposição, a deixarem as diferenças de lado e unirem forças para repudiar as agressões dos radicais e defender a democracia brasileira, que esteve ameaçada. Desde então, Lula usa o caso como trunfo, alegando ser um autêntico republicano, diferentemente de seu antecessor, chamado de golpista e entusiasta da ditadura. A estratégia faz sentido.
Segundo pesquisa Genial/Quaest, 86% dos entrevistados desaprovam o vandalismo ocorrido na Praça dos Três Poderes. É por isso que Lula faz questão de, sempre que pode, explorar politicamente o tema. Ele conta com a suposta ameaça ao estado democrático de direito para formar uma frente ampla, como fez na campanha eleitoral passada, a fim de impedir a volta de “fascistas” ao poder em 2026. Conta também com o episódio para, num momento de estabilidade em sua popularidade, tentar capitalizar agendas positivas e boa vontade.

Foi o que ocorreu na quarta-feira 8, na solenidade realizada no Palácio do Planalto para lembrar os dois anos da quebradeira promovida por extremistas bolsonaristas. Diante de uma plateia formada principalmente por aliados e subordinados, Lula, agora com uma nova equipe de comunicação, pegou carona no filme Ainda Estou Aqui — que rendeu um Globo de Ouro à atriz Fernanda Torres e parte do sumiço e assassinato do ex-deputado Rubens Paiva pela repressão, em 1971 — para exaltar seu governo e as instituições e, na outra ponta, desgastar Bolsonaro, que, apesar de inelegível, continua como seu mais poderoso rival. “Hoje é dia de dizer, em alto e bom som, ainda estamos aqui. Estamos aqui para dizer que estamos vivos, que a democracia está viva, ao contrário do que planejavam os golpistas de 8 janeiro de 2023”, disse o presidente ao iniciar a leitura de seu discurso. “Estamos aqui para dizer em alto e bom som ditadura nunca mais. Estamos aqui para lembrar que, se estamos aqui, é porque a democracia venceu”, acrescentou. A plateia aplaudiu com entusiasmo, mas Lula não conseguiu colher todos os dividendos que gostaria com a cerimônia.

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O plano do presidente era reunir no Planalto os chefes dos Três Poderes, governadores e a nata dos líderes partidários, de modo a dar uma demonstração de prestígio. Na última reunião ministerial do ano passado, Lula convocou os auxiliares de primeiro escalão para a solenidade. Muitos já estavam com férias agendadas, mas suspenderam o descanso, mesmo que por um dia, após a intimação do chefe. Também foram chamados os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), além de seus prováveis sucessores, o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) e o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Alegando compromissos pessoais e viagens ao exterior, nenhum deles compareceu. Pacheco enviou o vice-presidente do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), para representar a Casa. Já a responsabilidade pela Câmara ficou com a segunda-secretária, a deputada Maria do Rosário (PT-RS). Líderes do Centrão e dirigentes de legendas que compõem a base governista, com as quais Lula espera contar na próxima corrida presidencial, também não estiveram presentes, assim como a ampla maioria dos governadores. O pretendido sinal de força deu lugar a um retrato de certo isolamento, compreensível diante das implicações políticas do caso.
Favoritos para comandar a Câmara e o Senado, Hugo Motta e Davi Alcolumbre foram cobrados por oposicionistas durante as negociações de suas respectivas campanhas sobre a possibilidade de colocarem em votação um projeto que prevê a anistia aos condenados por atos golpistas. Quase 400 pessoas, entre mais de 2 000 investigadas, já foram condenadas a penas que variam de prestação de serviços à comunidade a dezessete anos de prisão. Além disso, cerca de 500 pessoas assumiram a prática de crimes de menor gravidade e firmaram um acordo com o Ministério Público Federal. O projeto de anistia, no entanto, tem como horizonte o futuro, e não o presente, e seu maior beneficiário pode ser o próprio Bolsonaro, caso ele seja condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe. Até agora, são mantidos em segredo os acordos que Motta e Alcolumbre fecharam para ascenderem à cúpula do Congresso. Enquanto não são eleitos, em votação marcada para fevereiro, os dois preferem não se manifestar publicamente sobre a anistia. Querem evitar problemas, como fez Arthur Lira, o parlamentar mais poderoso do Brasil, ao dizer no ano passado que resolveria a questão ainda em sua gestão, mas depois mudou de planos.

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Salvo raras exceções, a classe política condena os ataques do 8 de Janeiro. Há divergências, no entanto, sobre o que ocorreu: se houve apenas vandalismo, como dizem os bolsonaristas, ou foi um atentado contra a democracia, como alegam os petistas. Há divergências também sobre as penas impostas pelo STF — se são corretas ou exageradas. Expoentes da esquerda e da direita concordam que uma eventual anistia dependerá da popularidade do governo Lula. Se o mandatário estiver forte, o projeto não deve avançar. Em seu discurso no Planalto, diante de um painel no qual estava escrito “Democracia Fortalecida”, o presidente defendeu punição exemplar aos golpistas. Ouviu-se também o coro “Sem anistia”. O fato é que o assunto continuará a dominar a pauta do Legislativo e caminhará lado a lado com a expectativa de apresentação de denúncia ao STF, pela Procuradoria-Geral da República, contra Bolsonaro, o general Braga Netto e outros trinta militares e civis investigados por suposta tentativa de golpe para manter o ex-presidente no poder. No fim do ano passado, a Polícia Federal indiciou Bolsonaro e companhia por uma série de crimes. No Supremo, o inquérito tem como relator o ministro Alexandre de Moraes, que compareceu à solenidade no Planalto e foi ovacionado pelos presentes.
Enquanto essas questões não forem resolvidas no Legislativo e no Judiciário, o 8 de Janeiro continuará a ecoar em Brasília. E enquanto o presidente explorar politicamente o tema, como fez na última quarta-feira, ele terá dificuldade para cicatrizar a relação com as Forças Armadas. Os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica foram ao palácio e se sentaram em uma das últimas fileiras reservadas aos convidados. A VEJA, o general Tomás Paiva disse que a solenidade transcorreu dentro da normalidade e lembrou que os comandantes também compareceram ao ato de 2024. Apesar do aparente clima de tranquilidade, a véspera da solenidade foi marcada por momentos de tensão. Representantes das cúpulas militares reclamaram de ter de participar, mais uma vez, de um ato com forte componente político, pensado para servir de palanque para Lula e organizado pela primeira-dama Rosângela da Silva, que até hoje não aceita ter sua segurança direta feita por militares. Eles também consideraram a iniciativa inoportuna por ser capaz de desfazer o duro trabalho de aproximação entre a caserna e o governo petista, cuja relação nunca teve a confiança como marca principal.

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Em meio às investigações que apuram o envolvimento de militares da ativa e da reserva no planejamento dos inaceitáveis ataques com o objetivo de anular a vitória de Lula, havia o temor de que os chefes das Forças fossem submetidos a constrangimentos e vaiados pela militância. Logo no início da cerimônia, houve um grito isolado de “Fora, militares golpistas”, mas a bordoada civil não ganhou adesão. O presidente, que sabia do mal-estar, intercalou um afago e uma cutucada em seu discurso. Logo na abertura, ele agradeceu ao ministro da Defesa, José Múcio, que já manifestou ao chefe a vontade de deixar o governo, por ter levado os comandantes, os quais mostrariam que é possível ter as Forças Armadas “com o propósito de defender a nossa soberania nacional”. Mais à frente, porém, Lula fez questão de mencionar o planejamento feito por “um bando de aloprados” — todos militares, segundo as investigações em curso no STF — para assassinar o presidente, o vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, em postura cômica, não fosse trágica e criminosa.

No roteiro pensado pela primeira-dama Janja, Lula, ministros e integrantes de movimentos sociais dariam um abraço simbólico na Praça dos Três Poderes como forma de abraçar a própria democracia. Em razão da chuva e da escassez de público, o retrato não saiu como o esperado. Antes da solenidade oficial, o Planalto aproveitou para apresentar obras de artes e outros objetos que foram restaurados após serem vandalizados. Entre eles, a tela As Mulatas, de Di Cavalcanti, rasgada em sete pontos pelos radicais, e um relógio do século XVII. Foi uma forma singela — e simbolicamente poderosa — de dizer que a democracia resistiu e venceu. Ela continua de pé, mas só estará livre de ameaças quando toda a intentona golpista for passada a limpo e seus líderes devidamente punidos, permitindo que a ferida seja, de uma vez por todas, cicatrizada.
Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2025, edição nº 2926
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