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Após três décadas de atendimento clínico, fui surpreendida por uma cena que acabou se tornando cada vez mais comum: durante a terapia, jovens pegavam seus vapes e davam tragadas como se estivessem bebendo um copo de água. Curiosamente, muitos nem estavam ali para tratar da dependência, mas baforavam o cigarro eletrônico enquanto falavam sobre seus desafios emocionais.
Esse comportamento me fez refletir sobre a naturalidade com que o vape se integrou ao cotidiano dessa geração. Como algo tão discreto se espalhou tão rapidamente? E, mais importante, quais foram e serão as consequências para a saúde deles?
Se existe uma substância que encapsula a complexidade da relação entre saúde pública e indústria, essa substância é a nicotina. Extraída da planta do tabaco, a nicotina é o ingrediente ativo responsável pela rápida dependência causada pelos cigarros convencionais e, mais recentemente, pelos cigarros eletrônicos.
Ela age diretamente no cérebro, liberando dopamina, o neurotransmissor da recompensa, o que torna a experiência de fumar ou vaporizar não só extremamente prazerosa, mas também difícil de abandonar. Na área de dependência química, a nicotina tem um potencial de dependência similar à de cocaína e heroína.
Tudo começou com o cigarro convencional, um coquetel químico de mais de 7 mil substâncias, das quais pelo menos 70 comprovadamente cancerígenas, como o alcatrão e as nitrosaminas. Durante décadas, o cigarro foi um símbolo de status, juventude e rebeldia. Quem cresceu nos anos 1980 ou 90 provavelmente se lembra das propagandas associando o cigarro a liberdade, aventura e corpos sarados.
Era tudo parte de uma estratégia calculada para criar novos consumidores, mesmo quando as evidências científicas já bradavam sobre os perigos do fumo.
Graças a políticas públicas robustas, incluindo a proibição da publicidade, ambientes livres de fumo, disponibilização de tratamento pelo SUS e campanhas educativas, os índices de tabagismo caíram drasticamente no Brasil: de quase 35% da população em 1989 para cerca de 9% em 2022.
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Mas, como qualquer indústria multibilionária, o tabaco não desapareceu. Ele se reinventou.
Os cigarros eletrônicos, ou e-cigarettes, surgiram como resposta da indústria a uma nova era. Inventados em 2003 pelo chinês Hon Lik, prometiam uma “alternativa mais segura” ao cigarro tradicional. O discurso convenceu, em detrimento da realidade.
Esses dispositivos, que aquecem um líquido contendo nicotina e outras substâncias químicas para produzir aerossol (vapor), evoluíram rapidamente e se tornaram cada vez mais potentes e viciantes. Os primeiros modelos de cigarro eletrônico eram pequenos, discretos, inteiramente descartáveis e continham baixas concentrações de nicotina. Eram vendidos como uma alternativa a quem queria parar de fumar. Depois surgiram os vape pens, que permitiam a troca dos cartuchos e ofereciam uma variedade de aromas e sabores.
Mas esses modelos mais leves ficaram ultrapassados e praticamente desapareceram do mercado. Isso porque a indústria seguiu outro caminho: passou a investir em dispositivos capazes de liberar doses muito mais altas de nicotina, com grande potencial de causar dependência.
A chamada terceira geração trouxe os vapes maiores, com tanques recarregáveis e enorme potência. Em seguida, a quarta geração revolucionou com os pods: aparelhos compactos e discretos, como o Juul, com muitos sabores, que ganharam enorme popularidade entre os jovens.
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Esses pods não usam apenas sais de nicotina (ainda extraída do tabaco, mas processada em laboratório para se tornar muito mais potente). Muitos também passaram a usar nicotina sintética — produzida inteiramente em laboratório —, que pode atingir níveis ainda mais altos de concentração e efeito.
Foi uma jogada estratégica: ao tornarem seus produtos altamente viciantes, as empresas do ramo criaram uma base fiel de consumidores. E, ao usar nicotina sintética, tentam escapar das normas de algumas agências reguladoras, como o FDA, que não época não previam a regulação de produtos com nicotina não derivados da folha do tabaco, bem como das críticas ambientais e sociais ligadas à plantação de tabaco — como a destruição ambiental e o envenenamento de trabalhadores que colhem as folhas.
Detalhe nada trivial: além da nicotina, esses dispositivos também podem ser usados para vaporizar outras substâncias psicoativas, como derivados da cannabis (THC e CBD), o que amplia ainda mais a preocupação sobre o impacto na saúde dos jovens.
Não só isso. Embora ainda raros, há relatos de adolescentes usando spice (também conhecida como K2, um tipo de cannabis superpotente e com efeitos negativos imprevisíveis) e até fentanil (um anestésico) nesses dispositivos. Uma garota de 13 anos na Inglaterra desmaiou e quase morreu na escola após usar seu pod com spice. Não menciono isso para causar pânico, mas para ilustrar como a versatilidade desses dispositivos abre caminho para usos que vão muito além do que a indústria costuma divulgar.
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O suposto dilema da regulamentação
Inicialmente, cogitou-se que a regulamentação dos cigarros eletrônicos poderia mitigar os riscos, ao limitar a concentração de nicotina, o que, teoricamente, reduziria seu potencial de causar dependência. Quem dera! Essa estratégia já foi atropelada pelos fatos. A utilização dos tais sais de nicotina e nicotina sintética tornou a dependência muito mais precoce.
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Não há como saber sua real composição, que não é disponibilizada pelas indústrias do tabagismo. Enquanto no cigarro tradicional a dependência podia levar anos para se estabelecer, hoje adolescentes que experimentam vape por apenas algumas semanas já podem se tornar dependentes.
Apesar da proibição pela Anvisa (inicialmente em 2009, reforçada em 2024) da venda, produção, importação e publicidade, os cigarros eletrônicos se espalharam rapidamente no Brasil, especialmente entre os jovens. Uma busca rápida na internet revela inúmeras lojas online oferecendo uma ampla variedade de produtos, com entrega para todo o país, facilidades de pagamento, parcelamento e descontos – nada que sugira um item proibido.
Com um clique, qualquer um pode comprar, por exemplo, o Black Sheep Dual Tank, que contém 20 mil puffs (tragadas), ou o Elfbar com sabor de frutas com 18 mil puffs e 50 mg de nicotina.
Não é de se espantar, portanto, que quase 17% dos adolescentes brasileiros já tenham experimentado o dispositivo – e que, entre os usuários frequentes, a maioria tenha entre 18 e 24 anos. A popularização dos vapes é impulsionada, em grande parte, pelas redes sociais e pela falta de uma regulamentação clara sobre publicidade digital.
Além disso, ainda hoje, circulam narrativas de que os vapes — que, no fim das contas, são basicamente dispositivos de liberação de nicotina — não seriam tão prejudiciais assim.
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Um artigo do New York Times, publicado em fevereiro, sugere que o FDA (agência regulatória dos EUA) deveria comprar a ideia de que os vapes são menos prejudiciais que os cigarros tradicionais e podem, assim, salvar vidas. No entanto, muitos especialistas em nicotina, como a cardiologista Stella Martins, uma das principais referências no tema no Brasil e autora dos livros Nicotina, o que sabemos? e Cigarros eletrônicos, o que sabemos?, contestam essa visão.
Segundo a médica, que atua no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo, a nicotina danifica o endotélio — a camada que reveste os vasos sanguíneos —, aumentando o risco de doenças cardiovasculares, como infarto e derrame. Além disso, interfere no metabolismo do colesterol, podendo elevar os níveis de LDL (o chamado “colesterol ruim”). Em mulheres, pode até antecipar a menopausa, entre vários outros efeitos nocivos. E, claro, ela vicia!
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Impactos em jovens – e cada vez mais cedo
Em consultórios médicos e psicológicos, o perfil do dependente de nicotina mudou: se antes eram adultos de 50 anos tentando largar o cigarro convencional, agora são jovens de 20 anos pedindo ajuda para parar de usar e-cigarettes, após relatarem vaporizar o dia inteiro.
Os impactos na saúde também se manifestam mais cedo. Um estudo recente com mais de 39 mil jovens de 16 a 19 anos no Canadá, EUA e Inglaterra revelou que o uso do vape está associado a um aumento significativo de sintomas respiratórios, como falta de ar, tosse e dor no peito. O risco foi ainda maior entre usuários frequentes, aqueles que utilizavam sais de nicotina ou nicotina sintética (encontrados no dispositivos mais recentes) e os que preferiam sabores como frutas ou combinações múltiplas.
Estamos falando de pessoas no início da vida adulta enfrentando problemas que, antes, só surgiam décadas depois do início do tabagismo. Além dos efeitos imediatos, há uma preocupação crescente sobre a relação entre o uso do vape e a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), uma condição progressiva que compromete a respiração e está entre as principais causas de morte associadas ao tabagismo.
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O risco mais alto de desenvolver DPOC foi observado em quem fuma e vaporiza ao mesmo tempo, mas mesmo os usuários exclusivos de vape não estão isentos de perigo. Ex-fumantes que passaram a vaporizar têm mais chances de desenvolver a doença do que aqueles que abandonaram o cigarro sem recorrer ao vape. E até mesmo pessoas que nunca fumaram, mas utilizam vape, apresentam um risco maior do que aquelas que nunca consumiram nem cigarro nem vape.
Parar de vaporizar nicotina não é apenas uma questão de força de vontade – exige estratégia e persistência. Como muitos vapes mostram o número de tragadas (puffs), uma abordagem eficaz é reduzir esse número gradualmente, cortando um terço por semana até atingir um mínimo, por exemplo. Se o dispositivo permitir ajuste de nicotina, diminuir a concentração pode ajudar, desde que isso não leve a mais tragadas para compensar.
O apoio de um psicólogo com abordagem cognitivo-comportamental pode ser fundamental nesse processo, oferecendo táticas para substituir o papel da nicotina na rotina do usuário. Medicamentos também podem ajudar: adesivos e pastilhas de nicotina, além de opções não nicotínicas como a citisina (indisponíveis no Brasil) ou bupropiona.
Os sintomas de abstinência da nicotina incluem irritabilidade, ansiedade, humor deprimido, cansaço, dificuldade de concentração, dores de cabeça e de barriga, tremores e insônia. São mais intensos na primeira semana e podem durar algumas semanas, embora a fissura para voltar a usar possa persistir por mais tempo. E se houver recaídas? Faz parte do processo. O mais importante é tentar de novo – porque, sim, é desafiador, mas totalmente possível.
*Ilana Pinsky é psicóloga clínica, doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. Siga a colunista no Instagram
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