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Quem visualiza o cardápio de tecnologias oferecido por profissionais de estética na internet provavelmente nem imagina que as primeiras tentativas de melhorar a aparência humana remontam há mais de três milênios. Pois se hoje o mercado de soluções para o rosto e o corpo ostenta uma lista incalculável de opções — nem todas confiáveis, diga-se —, no Egito dos faraós já havia intervenções para corrigir distorções no nariz e, alguns séculos mais tarde, um médico do Império Romano esboçava o primeiro guia de técnicas para atenuar imperfeições. A busca da beleza, com os padrões de cada época, é antiga e bebe dos avanços no conhecimento. A partir do momento em que o major britânico Harold Gillies, sensibilizado pelos danos faciais sofridos pelos soldados na Primeira Guerra Mundial, fundou a cirurgia plástica moderna, os progressos na manipulação da pele e de outros tecidos não pararam mais. E, a partir das décadas de 1960 e 1970, o que antes estava confinado ao campo da reconstrução se expandiu para o imenso terreno da estética.
Com o aperfeiçoamento e o barateamento das técnicas, o ser humano começou a moldar suas formas numa escala antes inimaginável. Uma história que, com novas maneiras de lapidar o corpo — muito além das cirúrgicas —, viria a dar um salto agora. Instigado pelas redes sociais e pela oferta de clínicas, o brasileiro se vê em condições de realizar um sonho que, infelizmente, às vezes vira pesadelo. Injeções de substâncias que preenchem e rejuvenescem o rosto, implantes de cabelos e hormônios, operações que esculpem o abdômen, protocolos para metamorfosear a visão no espelho, harmonizações que vão das faces aos glúteos… As promessas são diversas, as indicações, nem sempre amparadas em ciência, e as execuções, em alguns casos, terminam de forma catastrófica.
O fato, inconteste, é que nunca se fez tanto procedimento estético no Brasil e lá fora. Um levantamento da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética aponta que, apenas em 2020, mesmo durante a pandemia de covid-19, cerca de 25 milhões de intervenções foram feitas em todo o mundo. Acompanhando um comércio efervescente, estima-se que esse número tenha tido um crescimento de 40% entre 2020 e 2024, com tendência de incrementos anuais de ao menos 15% até 2030. Não é moda passageira. “Há uma crescente demanda impulsionada pela maior conscientização com os cuidados de saúde e beleza, além do envelhecimento da população”, aponta, em nota, a Sociedade Brasileira de Estética e Cosmética. “Outro fator decisivo é a inovação técnica, que propicia tratamentos mais acessíveis e eficazes.”
Se por um lado os procedimentos estão na boca e nas expectativas do povo, por outro dão margem a um problema de saúde pública. Ele se manifesta na onipresente insatisfação pessoal com o próprio corpo, alimentada pelos padrões frequentemente irreais atrelados a selfies, e pela explosão no número de clínicas e profissionais que tentam surfar a onda de um segmento que ainda carece de regulamentação e fiscalização. Um setor em que a propaganda na internet e o número de seguidores no Instagram podem ter mais peso que a ética e o currículo. Nesse contexto, que engloba de clínicas sofisticadas a operações de fundo de quintal, a própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reconhece a VEJA que, por mais que se esforce para otimizar processos, não dispõe de quadro de servidores suficiente para inspecionar tantos estabelecimentos — algo que se repete com os órgãos de vigilância de estados e municípios.

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É nesse cenário que, sem orientação e respaldo de bons profissionais e infraestrutura adequada, atrocidades acontecem. Embora não existam estatísticas fidedignas dos reveses, casos trágicos não faltam. Em junho do ano passado, o empresário Henrique da Silva Chagas, 27, sofreu uma parada cardiorrespiratória após realizar um peeling de fenol por 4 500 reais na clínica de uma influenciadora na capital paulista. Em novembro, Paloma Lopes Alves, 31, teve uma embolia pulmonar enquanto passava por uma “hidrolipo”. Em dezembro, a servidora pública Danielle de Brito Monteiro, 44, foi acometida por uma reação alérgica grave depois de ser submetida a um procedimento facial com um produto sem registro em Goiânia. Em todos esses casos — alguns dos que ganharam evidência nas mesmas redes sociais que propagam as soluções —, os pacientes morreram.
Mesmo quando não ocorrem fatalidades, intervenções malfeitas podem resultar em sequelas e arrependimentos. É o que se diagnostica ao ler os relatos de personalidades como a atriz Deborah Secco, que voltou atrás em uma sessão para redefinir contornos do rosto, e a influencer Maíra Cardi, que revelou ter dificuldade de encontrar médicos que aceitem retirar o polimetilmetacrilato (PMMA) que foi aplicado nos seus lábios como um preenchedor sem que ela soubesse dos riscos. Por causa dessa mesma substância, utilizada em um procedimento de harmonização facial, a influenciadora Mariana Michelini ficou desfigurada e precisou retirar parte dos lábios.
De fato, as injeções de PMMA, substância empregada para preencher e embelezar partes do corpo, representam um dos maiores perigos. Diferentemente do ácido hialurônico, cujo efeito pode ser revertido com a aplicação de uma enzima, ele é um derivado do plástico com efeito permanente. É comumente usado na medicina como cimento ortopédico ou para o tratamento de lipodistrofias (alteração anormal da disposição de gordura pelo corpo), e, mesmo assim, pode desatar efeitos adversos severos. Não por acaso, o Conselho Federal de Medicina (CFM) pediu à Anvisa a suspensão de sua fabricação e de seu uso como preenchedor.
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O PMMA é um exemplo gritante das brechas regulatórias e da exploração indiscriminada (e, por vezes, criminosa) de produtos para fins estéticos. “A ausência de diretrizes claras cria uma zona cinzenta que permite a oferta de serviços sem embasamento suficiente, colocando em risco a segurança dos pacientes”, afirma o bioquímico Carlos Jorge Rocha Oliveira, editor da Revista Científica de Estética e Cosmetologia. Segundo o pesquisador, existem muitos procedimentos que, apesar de disseminados, não possuem evidências suficientes de segurança e eficácia. Entre os principais estão alguns bioestimuladores de colágeno que nem sequer têm registro sanitário e sessões de ultrassom e radiofrequência que, apesar dos estudos na área, carecem de normas e medidas legais para resguardar os pacientes.
Nesse horizonte nebuloso, uma operação realizada no início de fevereiro pela Anvisa dá uma mostra do que pode ser encontrado e oferecido pelo país. O órgão visitou e investigou 31 estabelecimentos no Sudeste e no Centro-Oeste e detectou irregularidades em trinta deles. Entre as infrações, foram descobertos produtos vencidos ou sem registro, fraudes em fórmulas manipuladas e até reutilização de equipamentos descartáveis. “O que chega até o conhecimento do público por meio do noticiário é uma ínfima fração do que acontece na prática. Estamos diante de um problema de proporções gigantescas”, diz o cirurgião José Hiran Gallo, presidente do CFM. “É louvável a iniciativa da Anvisa, porém ela só será realmente eficaz se não ficar limitada a ações pontuais, que representam a ponta do iceberg.”

O desafio, por mais que a agência e outras entidades se empenhem, é acompanhar o ritmo de abertura de estabelecimentos e a atuação de profissionais com diversas formações na área de estética e beleza. Pelas contas do Sebrae, apenas em 2023 foram registrados cerca de 500 novos microempreendedores por dia nesse ramo. Enquanto isso, a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos calcula que o número de profissionais de estética no país tenha passado de 72 000 em 2019 para mais de 480 000 em 2024, um aumento que bate os 500%. “Os órgãos de vigilância estão mais que sobrecarregados com esse excesso de clínicas”, afirma o médico Daniel Regazzini, diretor da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
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Vale ressaltar, ainda, que a própria ação da Anvisa é limitada. A vigilância sanitária tem a capacidade de fiscalizar aspectos de segurança, como equipamentos, produtos e armazenamento, mas o exercício profissional fica a cargo dos conselhos de classe. E não são poucos os autorizados a realizar esses procedimentos. Em 2012, o governo sancionou a Lei nº 12.592, que permitiu uma maior profissionalização e expansão no setor de estética. Na esteira, diversas decisões autorizaram que biólogos, biomédicos, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, dentistas e esteticistas pudessem realizar intervenções, além dos médicos. Questionados pela reportagem de VEJA, os conselhos nacionais de Biologia, Biomedicina, Enfermagem, Farmácia e Odontologia disseram que fiscalizam as clínicas que contratam profissionais de suas respectivas categorias. Não parece ser a vigilância mais efetiva, haja vista a escalada de problemas.
Há outro imbróglio em jogo — e que divide opiniões e interesses. É o chamado “ato médico”, uma resolução que restringe a realização de tratamentos mais invasivos a quem tem formação em medicina visando à segurança e ao bem-estar dos pacientes. Ocorre que nem todas as classes concordam com ela e parece haver uma falta de consenso sobre o termo. “Podemos considerar procedimentos estéticos invasivos as intervenções que atingem a derme, rompem a barreira da pele ou mucosas, afetam estruturas internas, como vasos sanguíneos, músculos e nervos, ou que envolvam a introdução de substâncias no organismo, assim como o uso de tecnologias capazes de provocar lesões e alterações nos tecidos”, expõe o médico Sérgio Palma, diretor da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
Essa interpretação permitiria apenas aos médicos com registro a possibilidade de fazer procedimentos como aplicação de Botox ou fios de sustentação na pele, mas os conselhos ouvidos defendem a habilidade e o treinamento de seus profissionais e interpretam que procedimentos invasivos são apenas aqueles que atingem órgãos internos, como está na letra da lei, o que, de maneira geral, tem sido corroborado por decisões jurídicas favoráveis à sua atuação. “A saúde estética é uma prática multidisciplinar cujo objetivo é promover o bem-estar e a autoestima dos clientes, sem se confundir com o tratamento de doenças”, diz Edgar Garcez Júnior, presidente do Conselho Federal de Biomedicina. Nessa direção, sendo médico ou não, o fator decisivo para assegurar bons resultados e mínimos riscos residiria na formação e na capacitação técnica do profissional.
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Os órgãos concordam, no entanto, que é preciso botar ordem na casa. Para Márcia Larica, presidente da Associação Nacional dos Esteticistas e Cosmetólogos, é urgente a criação de uma entidade com competência para fiscalizar esse tipo de atividade. Desde 2018, uma lei regulamenta a profissão de esteticista e cosmetólogo, mas, até hoje, ainda não há um conselho federal voltado à ocupação, o que impede o estabelecimento de um grupo de trabalho capaz de executar uma ampla fiscalização. “Todos estaremos mais seguros quando ele for criado”, afirma Larica.

Enquanto essas medidas não se tornam realidade, procedimentos de alto risco, como os que envolvem esfoliação química e aplicação de laser, continuam sendo realizados por pessoas sem treinamento em clínicas, spas e até salões de beleza. Nesses casos, não há instituição responsável pela inspeção profissional. Cabe, então, ao Ministério Público, assim como às polícias Civil e Federal, apurar denúncias e combater irregularidades. Muito além disso, ainda existe o mercado paralelo e sem regras da internet. Uma rápida busca no Google permite encontrar e comprar um curso de peeling de fenol — ativo hoje proibido no país — por cinco parcelas de 3 300 reais. Um frasco de 1 litro dessa solução, assim como outros ingredientes para esfoliação química, pode ser adquirido por menos de 100 reais. “Enquanto não tivermos um controle adequado, viveremos sob uma tempestade que tem causado danos”, diz Gallo.
Que fique claro: não se trata de demonizar procedimentos estéticos ou perseguir profissionais, muito menos de censurar o legítimo desejo de cuidar do corpo. Mas, definitivamente, a busca por satisfação pessoal não pode andar distante do bom senso e do cuidado com a saúde. O avanço no conhecimento e na tecnologia nos propicia hoje possibilidades insondáveis para a sociedade de um século atrás. Não se pode manchar esse progresso com a sanha do lucro fácil e a busca desmedida e irresponsável pela beleza a qualquer custo.
Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2025, edição nº 2933
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