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As chamadas canetas de GLP-1, usadas originalmente no tratamento do diabetes tipo 2, têm mostrado eficácia significativa na perda de peso em pessoas com obesidade. Especialistas, no entanto, alertam que a maioria dos estudos disponíveis apresenta lacunas importantes, como o financiamento predominante pela indústria farmacêutica, a falta de investigação dos efeitos a longo prazo e a ausência de informações consistentes sobre o que ocorre após a interrupção do uso.
A conclusão vem de revisões sistemáticas recém-publicadas pela Cochrane — uma das fontes mais respeitadas do mundo em evidência científica — encomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para orientar futuras diretrizes sobre o uso desses medicamentos no manejo da obesidade.
As análises revisaram ensaios clínicos randomizados, somando mais de 44 mil participantes, que avaliaram três agonistas do receptor de GLP-1: tirzepatida, semaglutida e liraglutida. Os pesquisadores analisaram como os estudos foram conduzidos, quais resultados apresentaram e onde ainda há lacunas. Eles explicam que o foco foi nesses três medicamentos porque são os atuais agonistas do receptor de GLP-1 com maiores ensaios clínicos robustos voltados ao tratamento da obesidade.
Outras drogas da mesma classe não foram incluídas por falta de evidências suficientes ou por não terem sido testadas com foco direto na perda de peso. Os estudos selecionados precisavam ser ensaios clínicos randomizados com grupo placebo (ou seja, um grupo de participantes que recebe uma substância inativa, sem efeito terapêutico, usada para comparar e medir os efeitos reais do medicamento), realizados em adultos com sobrepeso ou obesidade e com duração mínima de 12 semanas, o que assegura comparações justas e resultados mais confiáveis.
As canetas começaram a ser usadas nos anos 2000 para tratar o diabetes tipo 2, especialmente em pacientes com doenças cardíacas ou renais. Nesses casos, ajudaram a controlar a glicemia, reduzir complicações e favorecer a perda de peso, além de diminuir o risco de morte prematura. Mais recentemente, passaram a ser testadas em pessoas com obesidade, já que imitam a atividade de um hormônio natural que torna a digestão mais lenta e ajuda na sensação de saciedade.
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Resultados promissores, mas variáveis
Em todas as revisões, tirzepatida, semaglutida e liraglutida mostraram perda de peso significativa em comparação ao placebo, geralmente mantida durante o uso do medicamento:
- Tirzepatida (injeção semanal): redução média de cerca de 16% do peso após 12 a 18 meses. Evidências sugerem que os efeitos podem se manter por até 3,5 anos, embora os dados de segurança a longo prazo ainda sejam limitados.
- Semaglutida (injeção semanal): redução de aproximadamente 11% do peso corporal após 24 a 68 semanas, com efeitos possivelmente sustentados por até dois anos. O medicamento aumenta a chance de redução de pelo menos 5% do peso, mas causa efeitos digestivos leves a moderados com frequência.
- Liraglutida (injeção diária): redução média de 4% a 5%, ainda assim aumentando a proporção de pessoas que atingem perda clinicamente relevante de peso em relação ao placebo. As evidências além de dois anos são escassas.
Em todas as revisões, os medicamentos GLP-1 não apresentaram diferença significativa em relação ao placebo quanto a eventos cardiovasculares graves, qualidade de vida ou mortalidade. “A única redução foi observada no subgrupo de pessoas com obesidade que já haviam tido um evento cardiovascular, como infarto, no estudo SELECT sobre semaglutida. É importante analisar dados de longo prazo, atualmente ausentes, para verificar se grupos de menor risco também se beneficiam”, explica Eva Madrid, copesquisadora principal da Universidade de Valparaíso, Chile, à VEJA.
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As lacunas
O principal ponto destacado pelos pesquisadores é que a maioria dos estudos incluídos foi financiada pelos próprios fabricantes dos medicamentos, que estiveram substancialmente envolvidos no planejamento, condução, análise e divulgação dos resultados. “Isso levanta preocupações sobre potenciais conflitos de interesse e a necessidade de pesquisas independentes”, ressaltam.
Os autores também enfatizam que o uso mais amplo desses medicamentos deve considerar os determinantes sociais e comerciais da saúde, incluindo acesso, preço e cobertura de seguro, para evitar o agravamento das desigualdades existentes entre pessoas com obesidade. “Os altos preços da semaglutida e da tirzepatida atualmente limitam o acesso, enquanto a expiração da patente da liraglutida permitiu a disponibilidade de versões genéricas mais acessíveis”, escrevem. A patente da semaglutida está prevista para expirar em 2026.
Outro fator destacado é que os estudos existentes foram conduzidos principalmente em países de renda média e alta, com representação limitada ou inexistente de regiões como África, América Central e Sudeste Asiático. Considerando a diversidade na composição corporal, dieta e comportamentos de saúde entre as populações, os autores ressaltam a importância de avaliar o desempenho desses medicamentos em diferentes contextos globais.
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Eles também observam que os efeitos colaterais a longo prazo, o impacto na saúde cardiovascular especificamente em pessoas com obesidade, bem como o reganho de peso após a interrupção do tratamento — uma realidade frequente — precisam ser mais discutidos e investigados, já que muitos pacientes acabam necessitando manter o uso por tempo indeterminado. Todos os estudos, sem exceção, não incluem dados robustos sobre o que ocorre após parar o tratamento.
“A maioria das pessoas recupera todo o peso perdido após interromper os medicamentos, o que pode comprometer a sustentabilidade dos benefícios a longo prazo. Por isso, é importante que os pacientes sejam informados antes de iniciar o tratamento; caso contrário, podem enfrentar decepção e sofrimento psicológico”, diz Madrid.
Encomendadas pela OMS, essas revisões irão subsidiar as futuras diretrizes da entidade sobre o uso de agonistas do receptor GLP-1 no tratamento da obesidade. A expectativa é que as diretrizes sejam lançadas em breve, após a consulta pública realizada em setembro. “O conjunto atual de evidências indica que esses medicamentos têm potencial para se tornar excelentes opções de tratamento, mas precisamos reunir dados de longo prazo e entender como ajudar pessoas com obesidade não apenas a atingir seus objetivos, mas também a mantê-los, especialmente aquelas que possam desejar ou precisar interromper o tratamento”, conclui Madrid.
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